Assoalho de Lembranças. Memórias Poéticas de Alagados



Quem viveu a suburbana na década de 80 e 90, como eu, lembra da vista da Baía de Todos os Santos, entre a ponte São João, por onde o trem passava, e a avenida Afrânio Peixoto, uma curva de maré. Naquela época essa curva era toda desenhada de madeiras, lembrando figuras geométricas. As casinhas eram quadradas, em cima de pontes retangulares, sustentadas por escoras de madeiras fincadas n’água. Tudo ali era madeira, uma arquitetura emergencial de sobrevivência, que atualmente a gente costuma chamar também de correria. Historicamente estamos correndo atrás do que tem sobrando para uma pequena parte da população. As palafitas são mais uma expressão de direitos essenciais negados, na histórica lista de ausências do Estado Brasileiro para com o seu povo. Já as expressões das potências daquele lugar, de casas simples e vidas abundantes, sempre estiveram ali, e permanecem vivos no maior bem que um território pode guardar: sua gente.

Costumo dizer que o encontro é um lugar sagrado, onde tudo pode acontecer. Foi há quatro anos que algumas mulheres que viveram na região daquela curva à beira da maré, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, conhecida como Alagados, encontraram a jornalista Bruna Hercog, através de uma oficina de escrita criativa ministrada por ela. De lá pra cá, encontraram a também jornalista Alessandra Flores e além de protagonistas de suas vidas e projetos, Ana Rosa dos Santos, Maria Augusta Dantas, Maria de Lourdes Silva, Maria do Amparo de Jesus Santana, Elza Cândida Barros, Maria Lindalva dos Prazeres, Josilda Moura do Nascimento, se tornaram protagonistas da obra literária Assoalho de Lembranças, livro de poesias e memórias dessas mulheres de Alagados, que além do Lobato, compreendia também a Massaranduba, Mangueira, Uruguai, ali na enseada entre a Península de Itapagipe e o Subúrbio Ferroviário. O livro físico, com 100 exemplares, tem o formato de uma grande ponte, aproximando as leitoras das memórias que fertilizaram a obra.                        

Graças a políticas de financiamento voltadas para a cultura, ou os famosos editais, o projeto que nasceu da oficina de escrita criativa, já ganhou pernas, braços, abraços e logo mais ganha asas, assim esperamos, pois não se trata de uma questão financeira apenas, mas de viabilizar ações que evidenciem a força e sensibilidade de nossas mulheres, a potência criativa no olhar de quem vive e é o gueto. Se trata da necessidade de encontros e parcerias com quem olha de outra maneira para nossas fragilidades, que não são nossas, mas de uma estrutura que insiste em nos manter à margem de direitos constitucionais. Não se trata, tão pouco de falta de preparo, mas da ausência de oportunidades, da real negação de direitos, mesmo. É um plano perfeito de opressão e vulnerabilidade. Só que não. As políticas ainda estão aquém do repertório de grandezas e profundidade criativa das nossas quebradas, é o que sinto quando me deparo com histórias que revelam a mim, parte da minha história, do que sou, como Assoalho de Lembranças me trouxe memórias suburbanas das palafitas que vi de longe na passagem do ônibus ou do trem, visitei algumas vezes na infância e já adulta, estive com meu filho na casa de uma amiga que estava aterrando parte da sua casa na ocasião. As palafitas das mulheres guerreiras, sensíveis e fortes mulheres suburbanas, bonitas, tornam grandiosas por suas palavras de memórias, as expressões do cotidiano de outrora em Alagados.  

Ainda que tão contemplada com essas riquezas, sinto falta de nossas histórias, muitas que são, espetaculares que são, ganhando o mundo através de nós. A gente quer mais e mais poesia de verdade, assim, visceral.

Só agradece.

 

Para conhecer melhor toda essa poética de memórias, sutileza e resistência, dê uma chegada no Instagram @minhahistoriacontoeu e conheça a equipe e os projetos que estão sendo movimentados a partir deste encontro lindo de mulheres.


Texto e imagem: Natureza França @mae_natureza__


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